Mais uma vez chafurdando nos interessantíssimos registros históricos da nossa raça, encontro a primeira ficção científica já escrita: L’an 2440. Rêve s’il em fut jamais (1771) do francês Louis Sébastien Mercier (1740-1814), com tradução no título deste post. Publicado primeiramente em Amsterdam, com receio de represálias, a exemplo da Enyclopédie do compatriota Denis Diderot (1713-1784), queimada em praça pública, garante sucessivas reedições neste país incentivador da cultura e ciência.
No livro, o personagem principal, ao qual não lhe é atribuído um nome, após debater sobre as injustiças de Paris, adormece e se encontra na Paris do futuro. Vejamos como Mercier monta sua ficção utópica.
Curiosamente, a imprensa, intitulada As Gazetas, foram o estopim da união mundial, dando aos cidadãos uma consciência global dos acontecimentos. Na Gazeta, as folhas de papel são duas vezes mais longas que os jornais britânicos. Graças a esta invenção*, “a comunicação se estabeleceu e cada vez mais as ciências voaram de um país a outro, como as letras de câmbio”. Todas as notícias que o personagem principal lê são as que gostaríamos de correr os olhos: o desaparecimento dos sinais de humilhação, opressão e anarquia, extinção dos exércitos mundiais, escravidão, impostos e tabaco. Não há mais clérigos: as religiões foram extintas por consenso, pois segundo o autor, mais separam as pessoas em grupos distintos que as unem. A guerra é vista no mundo “como uma extravagância imbecil e bárbara”. E não é? Bem, algumas nações ainda acham que não. Não vou citar nomes; não quero agentes do serviço secreto à minha porta!
Mercier faz uma volta ao mundo sem sair de sua Paris. Mostra a situação atual de todos países,

Há longos comentários sobre a tecnologia futura, onde “nós, pequenos, fracos e mesquinhos, em todos nossos monumentos públicos empregamos nossa indústria, nossos instrumentos e nossos raros conhecimentos apenas para ornar coisas de pura vaidade e para edificar magníficas bobagens. Quase todas as nossas obras primas são joguetes de crianças”. Há redes de estradas e hidrovias que ligam o oriente ao ociente e exemplares vias de comunicação. Estão presentes as idéias lamarkianas e evolucionistas de hibridação para a melhora da raça humana. Os mais notáveis são os “motores voadores com mola aperfeiçoados”.
Mas como toda ficção não pode ser dissociada do presente do autor, há trechos polêmicos, com relação às mulheres, onde ele dedica um capítulo inteiro a este tema, duas vezes mais longo que os demais. Tudo pode ser resumido em duas frases: “As mulheres não tem outra distinção que aquela que seu esposo faz respingar nelas: todas submissas aos seus deveres que seu sexo lhes impõe, sua honra é de seguir as leis austeras, as únicas que asseguram a felicidade”. E “a natureza semeou menos variedades no caráter delas do que nos homens. Quase todas as mulheres se parecem: elas só têm uma meta, e isso se manifesta em todos os países através de efeitos parecidos”. Só que o século de Mercier é caracterizado por muitos historiadores como “o século da mulher”, onde ela está presente em todos os aspectos da vida social, nos debates teóricos e nos movimentos coletivos. Acredito que tenha ficado explícita sua opinião sobre o tema.
Pelo que pude verificar, as principais influências de Mercier foram as sucessivas publicações utópicas na Europa do seu tempo, de Bossuet (1627-1704), Fénelon (1651-1715), e Henrique IV (1553-1610) e as distópicas, por Savinien Cyrano de Bergerac (1619-1655) e Jonathan Swift (1667-1745).
Esta é uma perspectiva totalmente nova para aquela sociedade: um futuro que exibe o presente como passado distante. Certamente um importante passo do passado que muito influenciou o futuro, este no qual estamos presentes.
Mas vou encerrar com a própria epígrafe desta obra, onde Mercier utiliza-se de uma frase de Leibniz: “O tempo presente está prenhe do futuro”.
* A imprensa em caracteres móveis e a tinta foram descobertos quase simultaneamente pelos chineses da idade média.
Nenhum comentário:
Postar um comentário